Somos todos arranjos provisórios de átomos de Segunda mão. Enquanto esse arranjo se mantém estável, devemos tentar algum sentido, neste estado tremelicante, que aqueles que vivem chamam de vida. Depois de todo esse profissionalismo, todas essas estrelas, todos esses milhões, penso no que, à falta de melhor nome chamo de futebol intransitivo.
Em um futebol sem bola, sem chuteiras, sem times, sem técnicos ou cartolas. Ele se define pelo que não é, pelo que não tem. É jogado no arredorzinho do apartamento, entre as carteiras de escola, no almoxarifado da firma. Não falo de futebol ruim ou amador.
Aquele joguinho fuleiro entre casados e solteiros tenta ser futebol, apesar de todos estarem conscientes de suas limitações. É muitos pontos abaixo disso (não abaixo, mas dentro, no fundo). O futebol de que falo tem a mesma relação com o de verdade como uma espiral de DNA se parece com Júnior Baiano.
O futebol intransitivo tem dois princípios: não há limites e não há adversários. Joga-se com tampinha de cerveja, bolinha de papel, caixa de chiclete vazia; os gols às vezes não há, às vezes há um ou vários e são de todos os tipos: cesto de papel virado, caixote vazio, a porta da loja. Joga-se sozinho, é claro, ou em dois, três, quantos quiserem; não há demarcação de campo nem de duração, marcam-se gols, mas não se contam direito; os times se rearranjam ao sabor das circunstâncias. “Tá bom, vai lá, Arnaldinho, o Tico vem para o nosso lado, a gente diminui o nosso gol, e vocês passam a atacar para o lado de cima da ladeira.”
E não é um privilégio dos jovens: o senhor aposentado, que devolve de trivela a bola que escapou de jogo de moleques, está em plena intransitividade. Nesse estado pré (ou pós) – verbal vale tudo – irradiar o jogo enquanto se joga, discutir se a bola entrou ou foi por cima de uma trave que não há; argumentar que foi falta, sim, porque doeu, e que é tácito o jogo ser interrompido e cada um ficar congelado até o carro passar. Não há regras, exceto uma: quem chuta longe vai buscar. Oh, reino do equilíbrio e da justiça. Oh, paraíso onde respira consciência. As meninas brincam mas as mulheres, não – já vêm com acesso instalado à epifania metafísica que todos queremos. O futebol intransitivo foi o meio que nós, pobres homens, inventamos para tentar chegar lá. Há meios mais trabalhosos – a religião pede sacrifício, a ciência pede estudo, as artes pedem talentos especiais, alguns bebem e tomam drogas, outros se entopem de dinheiro, mas a visão do Todo não vem por meio do esforço. Basta achar na rua uma caixinha de fósforos abandonada e um vãozinho qualquer que sirva de gol. Chuta-se. A bola imaginária sai rente ao verde gramado virtual e vai lá, no cantinho, indefensável. E faz-se a luz.
Em um futebol sem bola, sem chuteiras, sem times, sem técnicos ou cartolas. Ele se define pelo que não é, pelo que não tem. É jogado no arredorzinho do apartamento, entre as carteiras de escola, no almoxarifado da firma. Não falo de futebol ruim ou amador.
Aquele joguinho fuleiro entre casados e solteiros tenta ser futebol, apesar de todos estarem conscientes de suas limitações. É muitos pontos abaixo disso (não abaixo, mas dentro, no fundo). O futebol de que falo tem a mesma relação com o de verdade como uma espiral de DNA se parece com Júnior Baiano.
O futebol intransitivo tem dois princípios: não há limites e não há adversários. Joga-se com tampinha de cerveja, bolinha de papel, caixa de chiclete vazia; os gols às vezes não há, às vezes há um ou vários e são de todos os tipos: cesto de papel virado, caixote vazio, a porta da loja. Joga-se sozinho, é claro, ou em dois, três, quantos quiserem; não há demarcação de campo nem de duração, marcam-se gols, mas não se contam direito; os times se rearranjam ao sabor das circunstâncias. “Tá bom, vai lá, Arnaldinho, o Tico vem para o nosso lado, a gente diminui o nosso gol, e vocês passam a atacar para o lado de cima da ladeira.”
E não é um privilégio dos jovens: o senhor aposentado, que devolve de trivela a bola que escapou de jogo de moleques, está em plena intransitividade. Nesse estado pré (ou pós) – verbal vale tudo – irradiar o jogo enquanto se joga, discutir se a bola entrou ou foi por cima de uma trave que não há; argumentar que foi falta, sim, porque doeu, e que é tácito o jogo ser interrompido e cada um ficar congelado até o carro passar. Não há regras, exceto uma: quem chuta longe vai buscar. Oh, reino do equilíbrio e da justiça. Oh, paraíso onde respira consciência. As meninas brincam mas as mulheres, não – já vêm com acesso instalado à epifania metafísica que todos queremos. O futebol intransitivo foi o meio que nós, pobres homens, inventamos para tentar chegar lá. Há meios mais trabalhosos – a religião pede sacrifício, a ciência pede estudo, as artes pedem talentos especiais, alguns bebem e tomam drogas, outros se entopem de dinheiro, mas a visão do Todo não vem por meio do esforço. Basta achar na rua uma caixinha de fósforos abandonada e um vãozinho qualquer que sirva de gol. Chuta-se. A bola imaginária sai rente ao verde gramado virtual e vai lá, no cantinho, indefensável. E faz-se a luz.
Um comentário:
Texto bom.
Quando é que você vai escrever sobre os seus "10 melhores filmes".
To esperando faz tempo.
Abração do amigão
Postar um comentário