(...) Homenagem
não traz ninguém da volta, mas talvez ajudem a nós, os que ficamos, a curtir
mais, e melhor, o que temos por perto, em lampejos de silêncio e contemplação
(ato heroico na correria destes tempos loucos e fascinantes, mas a gente
consegue). A morte, intrusa indesejada, sobre a qual tanto se fala, se pensa,
se escreve, foi personagem de algum de meus livros e causa de algumas
incuráveis dores. Ela não pede licença: sem bater, escancara num repelão porta
ou janela, entra num salto, com suas vestes cheirado a mofo e seus olhos de
gato no escuro. Às vezes pega quem mais amamos. E aí não tem remédio, não tem
descanso, não tem nada, senão a dor – apesar da nossa natural dificuldade de
lidar com ela, a dor é necessária nesses primeiros tempos. É preciso chegar ao
fundo do poço escuro para pode sair dele, ou ao menos ter a cabeça à tona
d’água. Presenças bondosas, conforto de alguma palavra amiga, saber que os
outros estão aí, que ajudam também nas coisas práticas, nos fazem sobreviver.
Mas não queiram que a gente não sofra, mesmo nessa nossa cultura do barulho e
da agitação, em que no segundo dia já querem que a gente passe o batom e saia
às compras. Não por maldade, mas por essa aflição que nos ataca diante do
sofrimento alheio, em parte porque ele é uma ameaça à nossa vidinha bem-posta:
seremos os próximos?
Mas quero
homenagear um amigo querido meu, de meu marido, de minha família, que morreu há
poucos dias. O nome não importa, quem o conheceu saberá. Sua idade não importa,
a tristeza é sempre a mesma. Qual seria a hora certa para morrer? Minha mãe
morreu aos 90 anos, há quase dez ausente deste nosso mundo, arrebatada pelo
cruel Alzheimer. Fazia anos que nem me reconhecia, mas também foi duro: de
repente, eu não tinha mais a quem pudesse chamar de “mãe”, e nem senti
extraordinariamente órfã.
Então, na
pessoa desse amigo, homenageio aqui a todos os que se foram – embora eu
acredite que permaneçam, não importa como, em forma de alma, energia ou
memória, o que já seria muito bom: de memórias positivas, que nos iluminem, nos
emocionem ou nos façam sorrir, estamos precisados. E homenageio aqui, também, a
todos nós que ficamos com a singular tarefa de preservar, no coração e no
pensamento, esses que aparentemente perdemos, e de aos poucos retomar a vida –
como os mortos gostariam que a gente fizesse. Pois igualmente acredito, com
firmeza, que é melhor deixar que os mortos morram (quem viveu isso entende) No
começo do luto “tudo é horrível”, dizia uma velha amiga, que havia muitos anos
tinha perdido um filho, “mas com o tempo dói menos”.
E afinal a
vida chama, ainda que no início isso nos pareça um insulto. Pois honrando a
vida também estamos honrando os nosso mortos, que, na nossa lembrança não mais
crispada, na nossa melancolia não mais indignada, na integração de seus atos e
palavras em nós, no que temos de melhor, continuarão vivos. Em última análise,
apesar de todo o dilaceramento, solidão e lágrimas, a morte (que não é fim, mas
transformação), estranhamente, loucamente, tem um poderio limitado: seu dedo
cruel e ossudo não consegue encontrar a tecla com que deletar nosso melhores
afetos. (LYA LUFT)
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