Encontrei este texto no blog Simples Coisas daVida. O autor, Antonio Prata, é escritor. Publicou alguns livros de contos e
crônicas, entre eles "Meio Intelectual, Meio de Esquerda", de onde
foi retirada esta bem humorada crônica.
-----------------------------------
Auto ajuda pra mim é cachaça, o resto é conversa
fiada. Tá bom: ioga, psicanálise, ikebana e danças de salão podem nos ajudar a
entrar em harmonia com nosso próprio eu, nos tornarmos seres humanos mais
evoluídos e blábláblá, mas quando o pé amado toca a incauta bunda, neguinho não
vai sentar-se em flor de lótus, escarafunchar seu processo edípico, podar a
samambaia nem dançar um tango argentino: vai é manguaçar.
É só ali, já mais perto da última dose que da
primeira, limados os graves e agudos – naquela quarta dimensão etílica: nem
dentro nem fora de nós mesmos –, que podemos respirar aliviados, encher o peito
e dizer que aquela ingrata não vale nada, que nós somos maiores que isso e que
a vida, meu amigo, a vida é uma coisa assim, a vida é assim uma coisa… Enfim,
uma coisa dessas que a gente diz sobre a vida quando está bêbado.
Se nas avalanches emocionais o nosso amigo
álcool aparece como um são-bernardo salvador, em nossos projetos mais ousados
ele surge como um cão-guia, um labrador a nos indicar os caminhos para além do
labirinto de nossas inibições. Em outras palavras: sem o álcool eu seria virgem
até hoje. Em plena adolescência ficar pelado diante de uma menina, sóbrio? Só
um psicopata seria capaz de tamanha frieza.
O que mais lastimo é que os chopes só tenham
vindo transformar asfalto em edredom quando eu já era quase um adulto. Como é
que na infância, a fase mais hardcore da vida, só havia groselha, Fanta Uva e
Toddynho em meu copo? Ah, se na quarta série eu conhecesse as benesses do
álcool, Joana, tudo teria sido diferente!
Lembra quando te pedi em namoro numa cartinha?
Você disse não. Mas é claro! Que passo desastrado, mandar uma carta a alguém
que você nunca beijou na boca perguntando uma coisa dessas. Só um ser humano
completamente sóbrio cometeria tamanha patacoada. Se ao invés do bilhete
tivesse te convidado pra tomar um chope na cantina, te contasse aquela piada de
português que meu tio Aristides havia me ensinado, te mostrado habilmente como
fazer uma boca de loco incrementada, um aviãozinho que dava looping, quem sabe,
Joana, eu e você, na quarta série, hein?
Bem, se eu tinha sobrevivido ao primeiro dia de aula
da primeira série, a seco, não seria na quarta que a coisa iria degringolar.
Lembro bem daquele dia. Eu havia passado dos dois aos seis anos numa outra
escola. A vida toda, portanto. Não conhecia ninguém ali. Era praticamente um
exilado político brasileiro chegando na Suécia. Imagina só se tivéssemos todos
tomado um uisquinho antes? Chegaríamos confiantes, sorridentes, sem nem nos
preocuparmos se seríamos aceitos ou se já na segunda aula ganharíamos para
sempre o apelido de Dumbo, Gordo, Anão… E se durante o recreio – aquele climão
de banho de sol em penitenciária –, em vez de comermos Cebolitos, ensimesmados
em nossa timidez, tomássemos um vinho em canequinhas da Turma da Mônica, em
torno da cantina? O entrosamento seria tão mais fácil. (A educação física
ficaria comprometida, mas quem liga para polichinelos diante da concórdia
universal?)
A dura jornada tinha na volta, na perua, seu
gran finale. Depois de cinco horas estudando aquelas coisas chatas, uma hora e
meia no trânsito, buzina, estresse. Se nossas mamães pusessem uma garrafa
térmica na lancheira com caipirinha, essas longas jornadas noite adentro seriam
inesquecíveis happy hours, road movies infantis. E nós todos ali dentro,
pequenos Kerouacs e Dennis Hoppers mirins, cruzaríamos a cidade a cantar a
plenos pulmões os últimos sucessos do Balão Mágico, Menudo e Trem da Alegria,
alheios ao resto do mundo.
Se na escola já era difícil, imagina aos dois
anos, quando você se deu conta, desesperado, que a mulher da sua vida tinha
outro? Que aquela dissimulada te alimentou falsas esperanças enquanto se
deitava com outro toda noite e, pior, esse outro era seu próprio pai! Ah, nesse
momento o maternal deveria ser um pub enfumaçado cheio de pobres diabos
dilacerados diante desse protocorno incurável – essa feriada cuja ilusão de
cura nos atirará em todas as maiores roubadas de nossas vidas dali pra frente,
do jardim dois até a cova. Aguardente na mamadeira era o mínimo que eu esperava
diante dessa hecatombe emocional e, no entanto, só nos ofertaram Hipoglós, nana
nenê e leite morno. Como são cruéis esses adultos.
Agora, se de todos os momentos trágicos da vida
eu pudesse escolher um, somente um, para receber o afago etílico em minh’alma,
seria obviamente o nascimento. Nós estávamos no quentinho, boiando, recebendo
comida na barriga, numa eterna soneca de manhã chuvosa de domingo, quando veio
aquele aperto, aquele barulho, aquela luz terrível e o frio, meu Deus, que
frio. Nesse momento um ser humano sensato deveria ter me olhado nos olhos,
percebido o profundo desamparo e, clemente, dado uma talagada duma aguardente
qualquer e dito: bebe, criança, bebe que a vida é dura, bebe que a vida é longa
e não tem mesmo o que fazer. Mas não, me viraram de ponta a cabeça, me deram um
tapa na bunda e ficaram me vendo chorar, sorrindo. Depois de um começo assim a
gente pensa o quê? Que vai resolver na análise? Na ioga? Fazendo arranjo de
flores? Dançando chá-chá-chá? Não, meu irmão: autoajuda pra mim é cachaça, o
resto é conversa fiada.
Um comentário:
Sirva-me várias doses, por favor...
Não sou anônima. Sou Keila...
Postar um comentário